Rupturas
Os autores
procuraram, de forma breve, situar a psicanálise dentro de um contexto
histórico-cultural desde o seu surgimento com Freud até os dias atuais. Mostram
como esta é mesmo fruto de uma ruptura
com as ciências e valores tradicionais e que seu trabalho hoje, como outrora,
projeta-se na linha de frente de necessárias rupturas com um estado de coisas que transtorna a existência do
indivíduo.
I
A modernidade caracterizou-se pelo
abandono das formas clássicas, consonantes e harmônicas, bem como pelo irromper
do espírito dividido em contradições. Na aurora deste período nasceu a psicanálise.
Freud observava os sonhos e deles extraía a estrutura e a dinâmica da vida
mental, descobrindo, através deles, o funcionamento da vida de vigília (Herrmann, 1979). Promoveu, assim,com seu método de
investigação, uma ruptura com o pensamento científico tradicional. Seu método
de pesquisa foi revolucionário, desde o momento em que tomou a si próprio como
objeto de suas observações. Na publicação desse
trabalho investigativo, ele revelou não apenas
o espírito científico de um pesquisador, mas a estética de um escritor.
Noemi Kon (1996), estudiosa da
obra de Freud e de sua relação com a modernidade, nos fala que este
pesquisador/escritor liberou sonhos e paixões para que reconduzissem a razão,
possibilitando à sua obra a emergência simultânea de ficção e ciência (Kon,
p.51). A proposição de Freud (1933) sobre as pulsões como “entidades míticas,
magníficas em sua imprecisão”, afirmava essa relação entre a ciência e a
imaginação em suas descobertas (Garcia-Roza, 1986). Contra o objeto e o método
da ciência de seu tempo, Freud inaugura um novo destino, já que a partir
daquele momento a intimidade do cientista dirige seu olhar e é objeto de sua
atenção (Kon, p. 70). Assim, pela ousadia de observar aquilo que se lhe ocultava
(o Inconsciente), ele chegou à descoberta da psicanálise. A “Interpretação dos
Sonhos” é o testemunho disso. Mais que nos sonhos de outrem, ali ele mergulhou nos
seus próprios e os revelou. Por essa época, comunicou a Fliess: “A Psicologia
está avançando de uma maneira estranha, está quase terminada, redigida como que
num sonho”. Referia-se à “Interpretação dos Sonhos”. Segundo depoimentos de
familiares a seus biógrafos, Freud encontrava-se nesse período num estado
semelhante ao oníric (Mahony, citado por Kon, p.143). A autora comenta a
informação acima propondo que nessa fase Freud sonhava para escrever e
escrevia para sonhar. Seu livro dos sonhos é assim vivido como proveniente de
uma escrita que lhe escapa [...] e que tem, também como no caso dos escritores
criativos, seu material originário de suas próprias lembranças e desejos
infantis (Ibid., p.143).
A psicanálise nasceu rompendo com
os sistemas científicos tradicionais de observação e pensamento, colocando num
mesmo plano, pela primeira vez no palco das ciências, a paixão e a razão, o
sonho e a vigília, a sanidade e insanidade. Para além do racional,
desvelaram-se as forças do irracional, da sexualidade e da paixão. Freud desaloja
a consciência e inclui os conflitos do eu (Kon, p.69). Ruptura é, então, raiz
e tradição da psicanálise, está entranhada em sua origem e em sua prática: na
clínica, o método clássico de decomposição do discurso leva à descoberta de
novos sentidos e de novas questões. Ou seja, rompe-se com o território da razão
para redespertara paixão para que esta, por sua vez, reconduza a razão; abre-se
passagem pelo visível para que o invisível se desvele e redirecione o olhar;
penetra-sena consciência para se estabelecer uma interlocução com o
inconsciente promotora de transformações na consciência.
Destes movimentos dialéticos,
novas e imprevisíveis proposições teóricas e técnicas se dão: novas combinações
promovem novos conceitos que podem, então, dar abertura a novas configurações.
E assim, novas articulações da teoria clássica com as situações clinicas atuais
promovem novos sistemas teóricos, abertos a novas combinações. Rêverie e memórias-sonho (Bion, 2006) passam a ser
qualidades da escuta analítica.
Nestes termos, o fazer do
psicanalista através de sua escuta e de suas interpretações, se dá pela
abertura de fendas no campo conhecido do analisando para fazer emergir o
desconhecido: com isto, ele desfaz ligações fechadas e saturadas e promove
dimensões novas de pensamento, abalando crenças sedimentadas e acionando um
novo modo de ver e pensar. Analisar, portanto,
será desarticular o já sabido para promover um novo saber, uma nova
compreensão, tanto para o paciente quanto para o analista. Será afastar-se do
conhecido e suportar a falta de um novo sentido.
Chuster (1999), referindo-se ao fechamento de sentido na compulsão de repetição
diz que é “na ruptura desse fechamento que se
instala o processo analítico” (p.15).
II
Vinãr (2009),
analisando a Pós-modernidade, propõe que esta se caracteriza por uma velocidade
de mudanças de crenças e de valores que desestabiliza um equilíbrio antes
mantido entre o antigo e o novo, provocando uma crise tão profunda de
referenciais, especialmente nos jovens, que “exige a cada sujeito um maior
trabalho no parto de sua singularidade” (p. 53). Este autor aponta para uma
mudança de mentalidade em relação ao efêmero, ao transitório e ao definitivo.
Com a contemporaneidade, caracterizada por uma crise de referências, o mesmo
propõe como função do trabalho analítico reabrir um espaço que integre
presente, passado e futuro, este “suprimido pela urgência e frenesi de uma
atualidade escaldante” (p.53). Compreendemos que desse modo a vida pode se abrir
para uma experiência mental, na construção de uma história que se segue em compreensão
aberta e criativa destas experiências (Bollas, 2002).
Bauman (2008) nos
fala da contemporaneidade como o tempo dos medos e da falta de esperança,
diferentemente de épocas passadas em que havia um sentimento de expectativa de
desenvolvimento progressivo, onde cada dia poderia ser melhor do que o
anterior. Atualmente a confiança na progressão foi substituída por um constante
sentimento de ameaça pela aceleração dos acontecimentos. Época dos
“tempos líquidos”- porque tudo muda rapidamente-, nada é feito para durar, para
ser sólido. Há uma busca de prazer eterno e de evasão da experiência de dor
resultando, entre outras coisas, na obsessão pelo
corpo ideal, no culto às celebridades, na insegurança e na instabilidade dos
relacionamentos amorosos. Tempo do “cada um por si”.
Poderíamos pensar na
gama de manifestações atuais de culto ao corpo, das relações com seus objetos
internos e externos, pautadas numa violência, que destroça, permanentemente e
com muita crueldade, seu mundo interno, produzindo uma enorme dor masoquista
narcísicas que tornam o sujeito isolado, apenas cercado de relações com
objetos-fetiche, onde o indivíduo fica imerso num mundo de controle e de relações
perversas (Green, 2005).
Então, na contemporaneidade,
caracterizada não mais pelos conflitos do eu, mas pelos esgarçamentos e
fragmentações, compete ao analista acolher o que encontra-se rompido,
esfiapado, ou desfeito, ou desmontado, ou desnaturado, ou diluído para, assim,
promover a criação de novas e toleráveis tramas no tecido mental, geralmente
precário para essa sustentação. Dito de outro
modo, cabe-lhe possibilitar a criação ou recriação de um continente para os
conteúdos mentais (Bion, 2006). Num tempo de relações esgarçadas e líquidas
(Bauman, 2008) é preciso que o analista
suporte as ausências do paciente para ajudá-lo a criar espaços produtivos de
trabalho analítico. Nesse tempo de vazios interiores (Kristeva, 1995), de sensorialidade
excessiva (Türcke, 2010) e não simbolizada, do irrepresentável (Botella, 2002),
será o analista quem irá precisar sonhar pelo paciente (Ogden, 2010; Grotstein,
2003) usando-se, para isto, de sua emoção, de sua imaginação e de sua intuição para
ajudá-lo a construir representações psíquicas, talvez nunca antes alcançadas.
Em relação às barreiras narcísicas– condição sempre presente num trabalho desta
natureza --, a função do analista, seria a de promover o espaço necessário para
o estabelecimento de uma relação, de um vínculo de proximidade e de intimidade que
sustente a possibilidade de um trabalho analítico.
III
Independentemente do momento
cultural que atravesse um grupo ou sociedade, o desenvolvimento humano será sempre
marcado por processos de ruptura, dos quais o modelo prototípico é o nascimento
que demarca a passagem da vida intrauterina para a extrauterina.
Tal ato exigirá do bebê um trabalho de respiração e de sucção. O mesmo ocorre,
p. ex., com o desmame, com a passagem da infância para a adolescência e desta
para a vida adulta, com as questões da sexualidade relacionadas às vivências
pré-edípicas e edípicas, assim como com as inúmeras e distintas vivências de
encontro e separação. Bion denominou esses processos de cesuras, que são cortes,
que a um só tempo acionam novo(s) movimento(s) e permitem o trânsito entre o
antes e depois. Nessas transformações, cada fase que dá surgimento à outra
preserva seus registros. Assim, estas diferentes etapas coexistem, algumas se
manifestando mais fortemente que outras de acordo com cada momento. Este modelo
de funcionamento mental permite que se trabalhe com a perspectiva de trânsito
por essas camadas, ou seja, pelas múltiplas formas de funcionamento mental
(Bion, 1996).
Dentro desta perspectiva, na qual
os aspectos primitivos e os aspectos amadurecidos da personalidade coexistem em
relação permanente e dialética, compreende-se que, na contemporaneidade, a
função do analista seja a de abrir canais de comunicação com o paciente que permitam
o trânsito, a fluência emocional pelas múltiplas dimensões de seu mundo mental,
estas advindas das rupturas e continuidades, próprias do evoluir da vida humana.
Tal comunicação exige do analista uma ampla intimidade com sua própria mente,
uma criatividade de mente sonhante e pensante capaz de atravessar essas fendas
e de alcançar essas variadas dimensões. Trata-se de uma abertura e de um trânsito
contínuo que o analista faz de seu consciente para o seu inconsciente e para o
inconsciente do analisando; e, mais além disto, que a dupla analítica faz de inconsciente
para inconsciente. A experiência emocional (Bion,1991) direcionará esta
abertura, proporcionando uma relação nova entre consciente e inconsciente
(Chuster, 1999).
IV
Compreende-se que a
condição interna do analista em relação ao seu trabalho analítico, hoje, não
difere daquela vivida nos tempos da criação da psicanálise – a mente sonhante
de Freud. Atualmente, é na vivência do desenvolvimento da sessão que o analista
experiência muitas vezes estranheza, por esta estar sendo vivida como um sonho,
em movimentos que surpreendem o presente e se abrem para um futuro
desconhecido.
Entendendo que uma
análise se dá nas tramas e intersecções entre o real e ficcional, o sonhar
acordado do analista, com seus processos primário e secundário acontecendo
simultaneamente, permite que certa qualidade de comunicação seja alcançada com
o paciente; comunicação esta que pode ajudar a tecer o que foi esgarçado pelas rupturas vividas pelo paciente e que ele não pôde tolerar e
sustentar e o levaram à fragmentação, à diluição, ao vazio, ao fortalecimento
de defesas narcísicas ou à deficiência das representações.
É bem provável que atualmente nos
deparemos com o analista precisando se desfazer de seus próprios credos e
crenças psicanalíticas, aventurando-se corajosamente a dar ouvidos aos próprios
sonhos e devaneios como via de acesso à liberação de algo que se pressupõe mais
verdadeiro e que acontece entre a dupla naquele momento exato da sessão, ainda
quando num primeiro instante, pareça não fazer nenhum sentido. Em outras
palavras, a figura do analista contemporâneo rompeu com a figura do analista
decifrador e detentor do saber (teórico/intelectual), para valorizar e
vivificar a experiência emocional que o encontro com a mente do analisando lhe
propicia em forma de sonhos ou devaneios.
Considerando que o
que está vivo está em constante mutação, as macro e microrupturas fazem parte deste evolver. Assim, ruptura é uma invariante. Precisamos encontrar modos de intervir neste
funcionamento quando a mesma se apresenta como bloqueadora do crescimento para devolver-lhe
o potencial de desenvolvimento. Podemos nos referir a isso como ruptura da ruptura.
Para finalizar estas
considerações, coloca-se uma questão vista como da maior importância e para a
qual ainda não se vislumbram respostas: como será o analista do futuro, sendo
ele um sujeito engendrado nesse universo “líquido” de nossa contemporaneidade?
Bibliografia:
BAUMAN, Z. (2008). Medo líquido.
Zahar, Rio de Janeiro.
BION, W.R. (2006). Atenção
e interpretação. Imago, 2ª. Ed., Rio de Janeiro.
_____, (1991). Aprendendo
com a experiência. Imago, Rio de Janeiro.
_____, (1996). Uma
memória do futuro vol. III: A aurora do esquecimento. Imago, Rio de
Janeiro.
BOTELLA, C &
BOTELLA, S. (2002). Irrepresentável: Mais além da representação. Criação
Humana, Porto Alegre.
CHUSTER, A.(1999) W.
R. Bion novas leituras: dos modelos científicos aos princípios ético-estéticos.
Vol. 1: parte teórica. Companhia de Freud, Rio de Janeiro.
GARCIA-ROZA, L. A. (1986). Introdução à
metapsicologia freudiana. Jorge Zahar, Rio de Janeiro.
GREEN, A. (2005). Ideas directrices para un psicoanálisis
contemporáneo: Desconocimiento y reconocimiento del inconsciente. Amorrortu, 1ª. Ed., Buenos Aires.
GROTSTEIN, J.S.
(2003). Quem é o sonhador que sonha o sonho? Um estudo de presenças
psíquicas. Imago Editora, Rio de Janeiro.
HERRMANN, F. (1979). Andaimes
do real: o método da Psicanálise. Casa do Psicólogo, São Paulo.
SCALIA,J.(2002). Exploring the Work of Christopher Bollas. The Vitality
of Objects, London and New York: Continuum, pg. 179-222.
KON, N. M.(1996). Freud
e seuduplo: Reflexões entre Psicanálise e Arte. EDUSP/Fapesp, São Paulo.
KRISTEVA, J. (1995). As novas doenças da
alma. Ed. Rocco, São Paulo.
OGDEN, T. H. (2010). Esta
arte da psicanálise: Sonhando sonhos não sonhados e gritos interrompidos. Artemed,
Porto Alegre.
TÜRCKE, C. (2010).
Sociedade excitada: filosofia da sensação. Editora da Unicamp. Campinas.
VIÑAR, M. N. (2009).
Mundos adolescentes y vértigocivilizatorio. EdicionesTrilce, Montevideo.
Adriana Laura Navarrete Bianchi
Ana Rita Nuti Pontes
Maria Aparecida Sidericoudes Polacchini
Maria Lucimar Fortes Paiva Defino
Nilton Cesar Bianchi