O ato no lugar do sonho:
falhas na representação
Rosângela de Oliveira
Faria
Instigada pelo tema do XXV Congresso
Brasileiro de Psicanálise, “Ato/sonho: a representação e seus limites”, a
realizar-se nos próximos dias 28, 29, 30 e 31 de outubro, em São Paulo, elaborei
um trabalho que será apresentado em Mesa Redonda, cujo mote para a discussão
com mais duas colegas será as falhas no processo de representação, essa atividade
mental que nos qualifica como humanos na medida em que significa a
transformação de um estímulo interno (percepção sensorial) em uma ideia ou
imagem.
Embora de forma simplificada, minha
exposição no “Semeando” abordará desde o advento da representação, para então
discorrer sobre as falhas que podem ocorrer nesse processo.
Toda mente ao nascer necessita de outra
mente para se desenvolver. Esse encontro inicial entre mentes se dá através de
projeções de proto-emoções (elementos emocionais sem significado mental) do bebê na mente materna.
Se a mãe é capaz de acolhê-las, através de sua capacidade de rêverie (a capacidade de aceitar, conter
e transformar uma forma de comunicação primitiva), esta função torna-se,
progressivamente, cada vez mais operante na mente da criança.
O bebê, ao sentir fome, ou frio, ou dor, por exemplo, não
sabe o que está sentindo: o que vive é ameaçador, por isso se desespera e
chora. Se a mãe o acolhe afetivamente, o que significa não se desesperar junto
com o bebê, e, ao contrário, entra em sintonia afetiva com ele e intui o que
ele sente, estará apaziguando-o - uma forma de mostrar-lhe que o desconforto
que vive não é uma ameaça de morte. Desta maneira a mãe estará construindo
representações a partir de sua intuição empática com o bebê e as oferecendo a
ele.
É
claro que em muitas situações a mãe não “sabe” o que o bebê está comunicando.
Então precisará contar com sua “capacidade negativa”, ou seja, a capacidade de
permanecer “sem saber”, tolerando incertezas e dúvidas, sem se desesperar. Se
isso é possível, em sua possibilidade de “escuta” atenta, a mãe continuamente
criará imagens a partir das proto-emoções que recebe - é o que chamamos de
“pensamento onírico de vigília” - e a partir deste, pensamentos são formados.
Portanto,
o “sonho” é o resultado de todo esse processo de transformação de proto-emoções
em emoções. Implica principalmente a condição de um aparato interno para
“pensar os pensamentos”. Ou, como nos diz o psicanalista italiano Antonino
Ferro, um processador de “emoções”, similar ao processador de alimentos:
transforma emoções brutas em emoções palatáveis.
Progressivamente
o bebê vai “introjetando” essa função. Esse processo leva tempo, e nesse tempo,
repetições dessas experiências de sintonia afetiva/comunicativa entre as duas
mentes (a criança e a mãe) promoverão transformações criativas contínuas que
culminarão no senso de identidade individual da criança.
Portanto,
fruto da relação, essa função introjetada é o que permitirá à criança uma
contínua transformação das angústias primitivas em emoções com significado.
Claro
que o estado mental da mãe e as qualidades de seu funcionamento oscilam,
implicando, às vezes, em uma menor receptividade ao que provém do bebê. O
importante é que as experiências de sintonia afetiva predominem para que ele
possa ter boas condições de desenvolvimento de sua atividade representativa.
Quando
não acontece uma correspondência emocional entre a mãe e o bebê, ou seja, as
proto-emoções do bebê não encontram espaço de acolhimento na mente da mãe, essas
retornam aumentadas para o bebê, expondo-o a sensações aterrorizadoras. No
predomínio dessas experiências, o desenvolvimento da atividade representacional
dos afetos ficará comprometido. As proto-emoções que não puderam se transformar
em elementos simbólicos, que constituem o substrato para a formação do
pensamento, poderão encontrar destino em comportamentos sem pensamento,
evacuados como alucinações, delírios, paranoias, esquizofrenias, autismos, etc.,
ou, poderão ser contidos em espaços da mente, gerando fobias, obsessões,
hipocondrias, etc. É quando o “ato” ocupa o lugar do “sonho”.
Na clínica psicanalítica, podemos utilizar
o modelo da relação mãe-bebê, para falar da relação analista-analisando. No
impacto inicial de cada encontro analítico, espera-se que o analista seja capaz
– assim como a mãe – de acolher as proto-emoções do analisando, transformá-las
e devolvê-las elaboradas, juntamente com o método para realizar tal operação. O
analista tem em sua capacidade de rêverie,
um precioso instrumento que vai lhe permitir a disposição em deixar-se
transitar pelas emoções que se desenvolvem a partir dos enunciados do paciente.
É através do contato com esse clima emocional propício da mente do analista que
a angústia do paciente, antes inexprimível, pode transformar-se em uma narração
de medos e ansiedades. Ou seja, através da troca e do acolhimento de
proto-emoções, aquilo que não foi pensado, nem é pensável ainda, começa a urgir
para encontrar uma transformação, primeiro em imagem (o pensamento onírico de
vigília) para depois tornar-se um relato compartilhável, através do qual é possível
dar um nome ao que antes não era representável.
A transformação de proto-emoções em
imagens visuais é, portanto, parte do processo de assimilação mental,
transformando a totalidade da experiência em uma forma adequada para seu
armazenamento na mente. Aí reside o “trabalho onírico de vigília”: armazenar a
experiência emocional em forma comunicável. Esta função transformadora é vital
para que a experiência possa ser apresentada à consciência de forma a ser
descoberta, pensada e significada.
Ao
longo do processo analítico, ao introjetar o modelo da função rêverie do analista em si mesmo, o
paciente pode então projetar suas angústias em sua própria função e pensar por
si mesmo, superando assim, as falhas do processo representacional.
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