Leiam os comentários do Luciano Bonfante sobre o filme "O Duplo" apresentado em 16 de Abril
A
todos que estão acompanhando o Cinema & Psicanálise de Franca temos a
seguir os comentários do instigante filme “O Duplo”, apresentado em abril,
comentários de Luciano Bonfante. Aproveitamos esta oportunidade ímpar de
reflexão sobre a aridez, a incompletude, a pluralidade e a miserabilidade que
cada indivíduo comporta dentro de si. Assim como, sobre as concomitantes formas
de se driblar a dor mental, na tentativa de darmos vazão à vida.
O Duplo
“Eu que me aguente comigo e com
os comigos de mim”
Álvaro de Campos (heterônimo de
Fernando Pessoa)
No início do filme O Duplo, assistimos a uma cena em um
vagão de metrô com apenas dois passageiros. Um deles, segurando um jornal, cuja
manchete é “Collapse\Colapso”, como se anunciasse o que está por vir, ordena a
outra pessoa a deixar assento: “você está no meu lugar”, diz. A segunda pessoa
é Simon James, funcionário em um escritório de ambiente claustrofóbico, sem
janelas ou luz natural. O prédio da empresa é ligado à estação do metrô pelo
subsolo. É constrangedora a falta de reação de Simon ao ceder à exigência do
desconhecido. Na mesma sequência, Simon observa uma garota no outro vagão,
tenta alcançá-la, mas falha. Trata-se de Hannah, garota que Simon vive
observando por uma luneta e almeja conquistá-la, mas não se encoraja em revelar
sua admiração. Ao sair do trem, a maleta de Simon fica prensada na porta, ele
puxa e fica só com a alça na mão enquanto trem parte. A essa altura, rimos do
ridículo da cena, mas lastimamos a inabilidade do rapaz, momento em que a
empatia com o personagem está em jogo, e dependerá da identificação do
espectador com o personagem. O que segue vai causando estranhamento e nos
lançando no absurdo dos acontecimentos na noite interminável do filme, sem
cenas à luz do dia.
Simon é um jovem tímido, sem iniciativa,
meio desajeitado e isolado da convivência social em um mundo onde as pessoas a
sua volta parecem insatisfeitas ou infelizes. Tudo parece dar errado para ele
no transcorrer do dia, às vezes, mostrado com comicidade, mas um humor
desconcertante, evidente quando Simon é interrogado por dois investigadores de
um suicídio testemunhado por ele. Banalizam a vida e a morte dando um
tratamento também burocrático para o trabalho deles.
Desde o início, sabemos da fragilidade
de Simon e o quanto lhe falta iniciativas e recursos internos para sua
sobrevivência. Uma pessoa cujos pensamentos e ações estão em constante
conflito, sem sentimento de liberdade, um pássaro que se choca com uma vidraça,
como é mostrado numa cena, dentre outras com elementos simbólicos espalhadas no
filme. Ele é uma pessoa “sem voz”, sua boca esboça movimento, mas as palavras
não se articulam, morrem em seus lábios, e seu desejo emudece. Sabemos que as
situações em que fracassa dependem de suas atitudes, mas ele é pouco capaz de
lidar com a vida. Na empresa, apesar de insistir nos sete anos de casa, que
alega ter, Simon não é reconhecido pelo porteiro, o que o obriga a apresentar
crachá a todo o momento, ou forçado a preencher uma ficha de visitante porque
ele não existe nos arquivos da empresa, situação que funciona como
metaforização para mostrar como ele é anulado por um sistema em que o ser
humano é “apenas parte do negócio”, como diz um personagem. Seu chefe sequer o
chama pelo nome, tratando-o por Stanley. São modos de anunciar seu
desaparecimento como ser humano que “não consta no sistema”, significando uma
ameaça à sua subjetividade, sua identidade e senso de existência.
O cotidiano de Simon é transformado
com a chegada de um novo funcionário, James Simon, de fisionomia idêntica à de
Simon James, mas de personalidade oposta: simpático, assertivo, sedutor e
funcionário eficiente. Com tantas
qualidades faltantes a Simon, este passa a sentir-se ameaçado, porém, o espanto
de Simon é a semelhança física com James, o que potencializa seu sofrimento.
Ele continua perturbado diante de seu “sósia”, sentindo-o como um espectro
ameaçador, como se o “duplo” fosse usurpando sua identidade, seu lugar na
empresa, e ele fosse desaparecendo. A perturbação na mente de Simon amplia e
testemunhamos seu crescente desespero até o desfecho.
Tanto para o leitor do livro quanto
para quem assiste ao filme, existe uma dificuldade de compreensão de como se
dão os acontecimentos da história. Para o raciocínio lógico linear, ficamos
confusos em distinguir os momentos de imaginação, memória, sonho, alucinação ou
a realidade material. Ora há clareza de que há apenas um homem dividido, ora de
alguém que está interagindo com outra pessoa por quem está se sentindo
perseguido. Mesmo porque, livro e filme mostram outros personagens interagindo
com “o duplo”. São leituras possíveis porque não é essa a questão proposta. O
importante aqui é a “divisão” que o personagem sofre, ou seja, importa a
realidade psíquica, a dor da solidão e o sentimento de não existir.
Há um trabalho de Freud (O Estranho,1919),
ele desenvolve a ideia da capacidade que nós temos de observarmos a nós mesmos
e o sentimento de estranhamento que podemos ter. O próprio Freud experimentou
esse sentimento de estranhamento, contando que durante uma viagem de trem, ele
se levanta de noite de pijama e, caminhando pelo corredor do vagão, ele olha
para o no final do corredor e vê a figura de um “estranho”, e diz que a figura
do homem não lhe agradou muito, até então, constatar que era ele mesmo
refletido no espelho de uma porta aberta à sua frente. Ele conta que encontrou
seu duplo, e experimenta o sentimento de estranhamento. Simon faz o abandono da
capacidade de se auto-observar e sente-se invadido por outra parte sua que
inicialmente lhe parece estranho por não reconhecê-la como sua.
No caso do filme, essa ideia é útil
porque Simon, ao tratar James como completo estranho, abandona o que Freud
chamou inicialmente de “censura psíquica” ou “superego” e perde a capacidade de
observar a si mesmo, assim toma por estranho o que é parte dele mesmo. A
respeito ainda do sentimento de estranhamento, Freud afirma que ele é próprio
do reavivamento de complexos infantis reprimidos. Referindo ao tema do duplo
como “distúrbio do Eu”, Freud escreve que “são
um recuo a determinadas fases de evolução do sentimento do Eu, uma regressão a
um tempo em que o Eu ainda não se delimitava nitidamente em relação ao mundo
externo e os outros”. Simon sente ser governado por James porque a
fronteira entre realidade e fantasia já não mais existe, ele estava assombrado
por um fantasma de si mesmo.
Simon desejava ser alguém com
características que não conseguia ter. Ele diz: “Não vejo o homem que quero ser
em relação ao homem que sou”. Essa condição do personagem confirma que o
sofrimento é maior quando há muita distância entre o que se é, e aquilo que se
gostaria de ser porque requer lidar com mais frustrações.
Sobre a idealização de um outro Eu, há
um detalhe interessante que não consta no livro, mas aparece no filme, que é a
figura da mãe de Simon que no filme é mostrada como uma mãe que depreciava o
filho. Se a maneira como um filho existe
na mente da mãe é muito importante para a qualidade da existência desde o
início da relação como bebê, ela surge como uma mãe invasiva. E nas cenas que
ela surge, está sempre acompanhada de outra figura, sempre fazendo duras críticas a ele. A hipótese é que dessa relação formou-se “uma
figura interna que se configura como um alguém que retira todos os seus valores
e aponta seus fracassos: um estado mental anormal da mãe que condena o bebê por
não se adequar ao seu ideal preestabelecido” (O’Shaughnessy,1999).
Do contato com a mãe, o vemos na tela
constitui seu mundo de fantasias e de um grande delírio de Simon. São imagens
bizarras, oníricas, um sonho interminável, desde as visitas feitas a ela, até
sua morte e a terrorífica sequência do enterro, mostrado como um pesadelo na
tentativa de solução de seu conflito. Simbolicamente, o enterro seria da parte
que o persegue, para aliviar sua mente cansada e proteger a outra parte do Eu.
Quanto à Hannah, ela quase não tem
função dramática. Inicialmente, sua presença reforça o fracasso em lidar na
relação com o outro. Simon está centrado demais em si mesmo para, realmente,
interessar-se por Hannah. Houve a
intenção de inserir um gesto romântico, como os brincos que Simon troca pela
TV, o que pode representar a tentativa dele de vê-la, de fato, como uma
parceira. No livro não há o pretenso par romântico e não é essencial para
contar o drama dele.
No entanto, Hannah acaba tendo uma
função importante, principalmente, na cena final, que me lembrou a afirmação do
filósofo irlandês Berkeley: “Ser é ser percebido/esse es percepiti” que é pertinente à cena de Simon deitado na
ambulância, seu olhar conectado a o olhar de Hannah, usando os brincos
presenteados por ele. Isso remete ao olhar materno que Simon pode não ter
vivido, de acordo com a mãe mostrada no filme e seu sentimento solidão indica
algo da qualidade da relação com a mãe no início de sua vida. Podemos pensar
que Simon é olhado daquela maneira pela primeira vez. Já não se sente tão
sozinho. Seu corpo pode estar morrendo, mas ele experimenta a verdadeira
existência pela primeira vez. É seu nascimento psíquico.
A cena em que Simon diz que seu corpo
poderia ser atravessado por uma mão é muito angustiante, traz o pavor do
sentimento de não existência e até a necessidade de se cortar para se sentir
vivo. Há o risco de se perder a identidade se ela não estiver firmada e bem
integrada, antes que se “acostume a morrer”, como alguém diz no filme. Na vida,
há o risco de se ser apenas um número, da pulseira da maternidade à lápide
tumular, com o intervalo entre um e outro preenchido somente com rótulos e
crachás. É trágico o indivíduo não conseguir ter em si um senso de existência,
a marca psíquica genuína que o faz único.
Pode-se ser solitário, mas capaz de
ser companhia para si mesmo. Frágil e precário, mas com recursos internos para
sofrer menos. Sentindo ser muitos, mas todos integrados em um: único, como
deseja Simon em sua última fala, “gostaria de pensar que sou o único”.
Unicidade que demanda viver a dor da incompletude e consequentes frustrações na
relação com o outro diferente mim; capacidade de ser boa companhia para si
mesmo, responsabilidade pelo que leva dentro de si, e, a arcar com as escolhas
feitas. O escritor Luigi Pirandello resume bem essa ideia: “O aspecto trágico
da vida está precisamente nessa lei que o obriga a ser um. Cada qual pode ser
um, nenhum, cem mil, mas a escolha é um imperativo”. Mesmo condenados a
escolher, é fundamental dar-se conta que em nossa mente são muitos os que nos
habitam e, poder viver em harmonia com essas dimensões de nossa mente, é nossa
arte, nosso desafio.
Luciano
Bonfante (SBPRP)
Lucianobonfante1@gmail.com