terça-feira, 4 de novembro de 2014

Ao terminar de assistir ao filme Vitus, do diretor suíço Fredi M. Murer, me deixei ficar enlevada pelos sonhos e altos voos que este filme desperta, ao mesmo tempo em que fiquei com perguntas inquietantes: quantos dos meus sonhos consegui realizar? Dos que perdi pelo caminho, quais obstáculos encontrei que me desviaram deles? Porém a questão central a que ele nos conduz me parece ser sobre a dificuldade que encontramos para realizar sonhos que nos levem em direção a nós mesmos. Em outras palavras, para conseguirmos ser nós próprios diante de tantas convenções que o “establishment” impõe, necessitamos ousar existir com nossas diferenças. Parece-me que Murer nos propõe reflexões sobre como poder escolher maneira própria de existir e mesmo assim permanecer em sintonia com o grupo social, apesar de nascermos com condições para ser e pensar diferentes da maioria.
Murer se declara um homem deslumbrado com a vida e diz que adiou em mais de 20 anos a realização deste roteiro e do filme, pois acreditou que era necessário estar mais velho para consegui-lo. Nem sempre mais idade significa maior sabedoria, mas no caso dele, por este filme, isto me parece complementar.
 O filme foca o período entre infância e início da adolescência de Vitus, período que é muito especial para qualquer um de nós, já que “é onde tudo pode acontecer: podemos ser um da Vinci, um bombeiro, um caubói, tudo é possível”, diz Murer.  De fato, nossos sonhos nesta fase de nossas vidas nos levam a construir futuros mesmo que improváveis, ilusórios, enquanto testamos nossas habilidades e descobrimos o que é possível de fato. Sonhos podem ser abortados pela ausência de continência para eles do nosso entorno, o que pode gerar falta de confiança em nós para leva-los adiante pela descrença em nossa capacidade própria. Não é o que acontece com Vitus, criança que se descobre pianista antes dos cinco anos de idade e seu virtuosismo somado à sua facilidade para com os estudos, o faz aos 13 anos estar apto para cursar uma faculdade.
No entanto sua vida emocional é bastante pobre ao lado do pai, que passa seu tempo trabalhando, preocupado com a ascensão social e econômica, e da mãe que se torna rigorosa sentinela do estudo de piano de seu filho.  É em seu avô que Vitus descobre um companheiro para uma vida mais criativa e cheia de brincadeiras, ao mesmo tempo em que nesta relação pode revelar-se verdadeiramente, compartilhar suas emoções enquanto experimenta existir.
Apesar de desconsiderado por professores e colegas de escola, rejeitado por sua inteligência que suscita sempre muita inveja, Vitus ama a música com todas as suas forças. No entanto lhe é difícil conter suas próprias emoções e decide fingir que perdeu sua genialidade e se “estupidifica” como se ao tornar-se mais “normal” pudesse sentir-se mais aceito e amado pelos que o rodeiam. Desta maneira, as pressões exercidas sobre ele, principalmente da sua mãe, diminuem, e ele pode fazer escolhas próprias. Apenas seu avô compartilha de seu segredo e é com ele de parceiro que este menino genial consegue mostrar quanto se pode aprender com cada criança que está ao nosso lado. Nem sempre ter mais idade é sinal de que se sabe mais e desta forma Vitus inverte a situação tornando-se ele quem oferece continente a todos.
Wilfred Bion, psicanalista contemporâneo, usando como sinônimos os termos gênio e místico, diz que entre o místico e o “Establishment” há uma relação problemática, que se repete durante a história. De fato, se procurarmos por exemplo entre músicos, ou pensadores, veremos quanto eles foram perseguidos por revelarem o novo, o diferente, com sua genialidade. Paganini, compositor e violinista extraordinário, era chamado de “Violinista do diabo”, pois tocava de maneira diferente, utilizando apenas quatro cordas do violino, ou para chocar, às vezes apenas com uma. Seus dedos muito longos e flexíveis dada uma doença nervosa que possuía, o levava a tocar de maneira notável e ainda não vista até então.
Penso podermos associar estas ideias tão rígidas e a obstrução sobre o novo, ou o diferente, aos resquícios deste estranhamento que ainda hoje persistem. Vitus pode ser tomado qual um representante de nosso incômodo frente àquele que de uma forma ou de outra se mostra genial em sua diferença. Lembro Carlos Drummond de Andrade:  parece-me que “quando Vitus nasceu, um anjo torto, desses que vivem na sombra, disse: Vai Vitus! ser gauche na vida” ...E ele sonha, pensa, decide e vai.

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