Ao terminar de assistir ao filme Vitus, do diretor
suíço Fredi M. Murer, me deixei ficar enlevada pelos sonhos e altos voos que
este filme desperta, ao mesmo tempo em que fiquei com perguntas inquietantes: quantos
dos meus sonhos consegui realizar? Dos que perdi pelo caminho, quais obstáculos
encontrei que me desviaram deles? Porém a questão central a que ele nos conduz
me parece ser sobre a dificuldade que encontramos para realizar sonhos que nos
levem em direção a nós mesmos. Em outras
palavras, para conseguirmos ser nós próprios diante de tantas convenções que o
“establishment” impõe, necessitamos ousar existir com nossas diferenças. Parece-me
que Murer nos propõe reflexões sobre como poder escolher maneira própria de
existir e mesmo assim permanecer em sintonia com o grupo social, apesar de
nascermos com condições para ser e pensar diferentes da maioria.
Murer se declara um homem deslumbrado com a vida e
diz que adiou em mais de 20 anos a realização deste roteiro e do filme, pois
acreditou que era necessário estar mais velho para consegui-lo. Nem sempre mais
idade significa maior sabedoria, mas no caso dele, por este filme, isto me
parece complementar.
O filme foca
o período entre infância e início da adolescência de Vitus, período que é muito
especial para qualquer um de nós, já que “é onde tudo pode acontecer: podemos
ser um da Vinci, um bombeiro, um caubói, tudo é possível”, diz Murer. De fato, nossos sonhos nesta fase de nossas
vidas nos levam a construir futuros mesmo que improváveis, ilusórios, enquanto
testamos nossas habilidades e descobrimos o que é possível de fato. Sonhos podem
ser abortados pela ausência de continência para eles do nosso entorno, o que
pode gerar falta de confiança em nós para leva-los adiante pela descrença em
nossa capacidade própria. Não é o que acontece com Vitus, criança que se
descobre pianista antes dos cinco anos de idade e seu virtuosismo somado à sua
facilidade para com os estudos, o faz aos 13 anos estar apto para cursar uma
faculdade.
No entanto sua vida emocional é bastante pobre ao
lado do pai, que passa seu tempo trabalhando, preocupado com a ascensão social
e econômica, e da mãe que se torna rigorosa sentinela do estudo de piano de seu
filho. É em seu avô que Vitus descobre
um companheiro para uma vida mais criativa e cheia de brincadeiras, ao mesmo
tempo em que nesta relação pode revelar-se verdadeiramente, compartilhar suas emoções
enquanto experimenta existir.
Apesar de desconsiderado por professores e colegas
de escola, rejeitado por sua inteligência que suscita sempre muita inveja,
Vitus ama a música com todas as suas forças. No entanto lhe é difícil conter
suas próprias emoções e decide fingir que perdeu sua genialidade e se
“estupidifica” como se ao tornar-se mais “normal” pudesse sentir-se mais aceito
e amado pelos que o rodeiam. Desta maneira, as pressões exercidas sobre ele,
principalmente da sua mãe, diminuem, e ele pode fazer escolhas próprias. Apenas
seu avô compartilha de seu segredo e é com ele de parceiro que este menino
genial consegue mostrar quanto se pode aprender com cada criança que está ao
nosso lado. Nem sempre ter mais idade é sinal de que se sabe mais e desta forma
Vitus inverte a situação tornando-se ele quem oferece continente a todos.
Wilfred Bion, psicanalista contemporâneo, usando
como sinônimos os termos gênio e místico, diz que entre o místico e o “Establishment”
há uma relação problemática, que se repete durante a história. De fato, se
procurarmos por exemplo entre músicos, ou pensadores, veremos quanto eles foram
perseguidos por revelarem o novo, o diferente, com sua genialidade. Paganini,
compositor e violinista extraordinário, era chamado de “Violinista do diabo”,
pois tocava de maneira diferente, utilizando apenas quatro cordas do violino,
ou para chocar, às vezes apenas com uma. Seus dedos muito longos e flexíveis
dada uma doença nervosa que possuía, o levava a tocar de maneira notável e
ainda não vista até então.
Penso podermos associar estas ideias tão rígidas e a
obstrução sobre o novo, ou o diferente, aos resquícios deste estranhamento que
ainda hoje persistem. Vitus pode ser tomado qual um representante de nosso
incômodo frente àquele que de uma forma ou de outra se mostra genial em sua
diferença. Lembro Carlos Drummond de Andrade:
parece-me que “quando Vitus nasceu, um anjo torto, desses que vivem na
sombra, disse: Vai Vitus! ser gauche na vida” ...E ele sonha, pensa, decide e
vai.
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