Por Silvana Andrade
Nascida na Ucrânia, Clarice chegou ao Brasil com menos de dois anos de idade. Considerando-se brasileira, lutou bravamente pela sua cidadania brasileira. Escreveu ao presidente Getúlio Vargas solicitando sua naturalização valendo-se do argumento:“Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo, mas que pensa, fala, escreve e age em português, fazendo disso sua profissão e nisso pousando todos os projetos do seu futuro, próximo ou longínquo.”
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Clarice não voltou à Rússia, mas viveu, irremediavelmente, a sensação de sentir-se "estrangeira” nos vários lugares em que viveu ao longo de sua vida.
O conceito de "estrangeiro" em psicanálise coincide com o retorno do recalcado, mas também se confunde com o outro, aquele que me é estranho, que eu não quero ser, que eu sinto que não é eu, mas, não obstante, habita em mim.
Clarice sabia muito bem o que isso significava, seus escritos demonstram que convivia com este estrangeiro ativo dentro de si cotidianamente.
Através da personagem G.H., por exemplo, Clarice nos conduz ao amago de uma crise de referência, típica do ser humano e bastante evidente na pós-modernidade.
"Estou procurando, estou procurando. estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi, mas não sei quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo desta desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro." ( A Paixão Segundo G.H., Editora Rocco, pag.4)
Nesta condição o ser humano já não sabe mais qual o seu lugar no mundo, ou o que pensar das suas experiências e como ajusta-las em um todo coerente e satisfatório, sua tendência é de compartilhar com o outro, família, amigos, etc. a noção e a imagem de tudo aquilo que não se é, uma vez que é mais fácil excluir e projetar no outro as próprias angústias.
Em seu percurso rumo ao conhecimento do estrangeiro, Clarice mergulha fundo nestas questões e não se propõe a assimilar e nem mesmo a negar as angústias advindas desta condição, pelo contrário, sustenta suas indagações na busca de abrir um espaço para admitir e tolerar este inquietante estranhamento presente em todos nós. Sua percepção e sua busca estão em sintonia com o olhar e o trabalho psicanalítico, que se propõe a ajudar o ser humano a sustentar esta exploração, a fim de que possamos admitir e tolerar o sentimento de ser estrangeiro, convivendo com os diferentes aspectos de sua personalidade.
Dada à complexidade da condição humana e da sociedade pós-contemporânea em que vivemos, a interlocução entre psicanálise e literatura demonstra ser uma excelente possibilidade de ampliarmos e afinarmos nossos instrumentos psicanalíticos e abrirmos espaços para acolher o estrangeiro dentro de nós, com seus aspectos híbrido e plural, permitindo a abertura para muitas singularidades e novas possibilidades.
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Carta de Clarice Lispector à Getúlio Vargas.
Rio de Janeiro, 3 de junho de 1942
Senhor Presidente Getúlio Vargas:
Quem lhe escreve é uma jornalista, ex-redatora da Agência Nacional (Departamento de Imprensa e Propaganda), atualmente n'A Noite, acadêmica da Faculdade Nacional de Direito e, casualmente, russa também.
Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo, mas que pensa, fala, escreve e age em português, fazendo disso sua profissão e nisso pousando todos os projetos do seu futuro, próximo ou longínquo. Que não tem pai nem mãe - o primeiro, assim como as irmãs da signatária, brasileiro naturalizado - e que por isso não se sente de modo algum presa ao país de onde veio, nem sequer por ouvir relatos sobre ele Que deseja casar-se com brasileiro e ter filhos brasileiros. Que, se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças.
Senhor presidente. Não pretendo afirmar que tenho prestado grandes serviços à Nação - requisito que poderia alegar para ter direito de pedir a V. Ex.ª. a dispensa de um ano de prazo, necessário a minha naturalização. Sou jovem e, salvo em ato de heroísmo, não poderia ter servido ao Brasil senão fragilmente. Demonstrei minha ligação com esta terra e meu desejo de servi-la, cooperando com o DIP, por meio de reportagens e artigos, distribuídos aos jornais do rio e dos estados, na divulgação e na propaganda do governo de V. Exª. E, de um modo geral, trabalhando na imprensa diária, o grande elemento de aproximação entre governo e povo.
Como jornalista, tomei parte em comemorações das grandes datas nacionais, participei da inauguração de inúmeras obras iniciadas por V. Exª., e estive mesmo ao lado de V. Exª mais de uma vez, sendo que a última em 1º de maio de 1941, Dia do Trabalho.
Se trago a V. Exª. o resumo dos meus trabalhos jornalísticos não é para pedir-lhe, como recompensa, o direito de ser brasileira. Prestei esses serviços espontânea e naturalmente, e nem poderia deixar de executá-los. Se neles falo é para atestar que já sou brasileira.
Posso apresentar provas materiais de tudo o que afirmo. Infelizmente, o que não posso provar
materialmente - e que, no entanto, é o que mais importa - é que tudo que fiz tinha como núcleo minha real união com o país e que não possuo, nem elegeria, outra pátria senão o Brasil.
Senhor presidente. Tomo a liberdade de solicitar a V. Exª. a dispensa do prazo de um ano, que se deve seguir ao processo que atualmente transita pelo Ministério da Justiça, com todos os requisitos satisfeitos. Poderei trabalhar, formar-me, fazer os indispensáveis projetos para o futuro, com segurança e estabilidade. A assinatura de V. Exª. tornará de direito uma situação de fato. Creia-me, Senhor Presidente, ela alargará minha vida. E um dia saberei provar que não a usei inutilmente.
Clarice Lispector