terça-feira, 8 de outubro de 2013

“Explosão”

Clarice Lispector foi escritora, repórter, jornalista, entrevistadora e pintora. Ela pintou vários quadros em madeira, respeitando as nervuras da matéria, mas mantendo sempre a liberdade de criar. Destaquei de seu conjunto de obras o quadro “Explosão”, de 1975, com a intenção de ilustrar a intertextualidade existente entre seus contos, romances e pinturas.

Nesse quadro - “Explosão” - Clarice jogou um vidro de esmalte vermelho berrante sobre a madeira. Três manchas vermelhas são o núcleo das rebentações e desses núcleos nascem rápidas pinceladas em preto e amarelo.

Segundo Olga Borelli (1981) Clarice descreveu esse quadro da seguinte maneira: “Quero escrever o borrão vermelho de sangue com as gotas e coágulos pingando de dentro para dentro. Quero escrever amarelo-ouro com raios de translucidez. Que não me entendam pouco-se-me-dá. Nada tenho a perder. Jogo tudo na violência que sempre me povoou, o grito áspero e agudo e prolongado, o grito que eu, por falso respeito humano, não dei. Mas aqui vai meu berro me rasgando as profundas entranhas de onde brota o estertor ambicionado. Quero abarcar o mundo com o terremoto causado pelo grito.”

Ao mergulhar na extensa obra de Clarice Lispector fui realizando ligações entre um texto e outro, percebendo que a intertextualidade realizada pela autora, com as suas próprias obras, foi se tornando instigante e integradora para mim. 

No conto “Amor”, que está no livro Laços de Família (1960), Clarice nos insere na experiência emocional de ruptura (explosão) entre o conhecido e o desconhecido do psiquismo da personagem. É o instante de ruptura de defesas, ruptura do distanciamento de si mesma que faz desabrochar, subitamente, o seu núcleo de existência. Ana - personagem desse conto - experimenta com toda intensidade novos conhecimentos sobre si mesma. Experimenta a explosão de sensações, de sentimentos, de vida interior. Seu mundo “falsamente organizado” é desconstruído; ela experimenta o doce gosto de sua existência.

Clarice nos diz no conto “Amor”:     
“Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse.  ...- tudo feito de modo a que um dia se  seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso.  ... Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver”.

Geralmente a crítica literária denomina esses momentos, essas explosões, de “epifania” – significando uma súbita revelação da verdade. 


Clarice, em sua obra, trazendo essas situações de Explosão, deixa-nos com a impressão de que seus personagens estão submersos em estados de mente que conseguem manter suas vidas estruturadas, porém superficiais, dominados pela mesmice. Mesmice que significa morte. Clarice quer vida, quer vida interior, quer profundidade, quer verdade, porque assim seus personagens (e ela mesma - acredito eu) se agarram desesperadamente ao seu sentimento de existência. Existência verdadeira, existência que guarda em si uma identidade própria. É o encontro com uma verdade buscada sobre si mesma que lhe parecia inatingível. Agarrar-se aos instantes de explosão de sensações e seu desenrolar tem como significado a experiência profunda de estar viva. É assim em “Paixão segundo G.H”. (1964), é assim em “A Hora da Estrela” (1977). 

Clarice, em “A Hora da Estrela” (1977), insere a palavra “explosão” inúmeras vezes, criando a impressão de que utilizava essa palavra  entre parêntesis como um recurso para não ter que descrever esses instantes através de imagens ou palavras. A palavra “explosão” já continha em si mesma os significados expostos em seus outros romances e contos.

Em seu livro “Paixão segundo G.H.”, sua personagem após experimentar a explosão, é assim “pintada” por Clarice: “Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo – quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.”

O livro “Água viva” (1973) é marcado pela descrição da autora da sua necessidade de experimentar esses momentos de explosão, que são os intantes-já.  Esses “instantes-já” a arremessam em direção ao seu sentimento de existência, de sua humanidade, de sua matéria-prima, de sua vontade de viver. 

“Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa(...) quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já. Só no ato do amorpela límpida abstração de estrela do que se sente - capta-se a incógnita do instante que é duramente cristalina e vibrante no ar e a vida é esse instante incontável, maior que o acontecimento em si: no amor o instante de impessoal joia refulge no ar, glória estranha de corpo, matéria sensibilizada pelo arrepio dos instantes – e o que se sente é ao mesmo tempo que imaterial tão objetivo que acontece como fora do corpo, faiscante no alto, alegria, alegria é matéria de tempo e é por excelência o instante. E no instante está o é dele mesmo. Quero captar o meu é. (...) Meu tema é o instante? meu tema de vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentária que sou e precários os momentos – só me comprometo com vida que nasça com o tempo e com ele cresça: só no tempo há espaço para mim”.

Clarice buscou, incessantemente, sentir a presença de vida em seu interior.  Principalmente, quando já estava aproximando-se da morte. Ela escreveu, concomitantemente, o romance belíssimo “A hora da Estrela” (1977) e “Sopro de Vida” (1978).

Ela encerra seu romance a “Hora da Estrela” assim:

“Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim.”

Clarice escreve para salvar a própria vida.


Denise L. Rosado Antônio
Psicanalista, Membro efetivo da SBPRP

A Psicanalista Denise L. Rosado Antônio será uma das palestrantes durante o evento de Psicanálise & Literatura – Clarice Lispector: Inquietações do inacessível que será realizado pela SBPRP no próximo dia 19 de outubro.

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